Fuck you too, Lance

Thijs Zonneveld, o autor do texto a seguir sobre Lance Armstrong, é um jovem de 32 anos que foi ciclista profissional entre 1998 e 2007. É doutorado em direito e é o iniciador de um projecto para a construção de uma montanha na Holanda - leram bem: uma MONTANHA. Mas como escreve muito melhor do que pedala, é ultimamente jornalista.

Caro Lance,

Durante anos cheguei a pensar que te chamavas Houdini. Todos os rumores, todos os testemunhos, todas as acusações – e sempre conseguias te prestidigitar. Mas tantas vezes o cântaro vai à fonte que um dia deixa lá ficar a asa. Por muito bom ilusionista que sejas, não podes fazer desaparecer o teu passado.

Lance, li o dossier jurídico de milhares de páginas  com testemunhos, e-mails e pagamentos bancários que a USADA recolheu. Esta leitura entristeceu-me, e a cada página mais um pouco. É a história de um homem que quer ganhar a todo o preço – e agora, anos depois, perde tudo.

Algum dia tinha que acontecer. Alguma vez acreditaste realmente que poderias controlar e intimidar durante toda a vida os teus ex-colegas, ex-mecânicos, ex-massagistas, ex-namoradas, ex-médicos e todos os outros?

No fundo compreendo-te, Lance. O caralho do EPO também. Nunca deveriam ter inventado tal coisa. Porque tu até nem precisavas de usar essa porcaria para ganhar. Sejamos francos: tu não eras o único que se injectava e se drogava. Há dez, quinze anos atrás, três quartos do pelotão consumia a querosene com três letras. Quem não utilizasse andava a correr para aquecer. Todos os ciclistas encontravam-se numa situação de reféns. Tu também.

Não me vou aqui armar em moralista. Talvez tivesse feito o mesmo na tua situação. Também fui ciclista, mas mais de boas-festas – e num período em que o uso de doping já se encontrava em fase decrescente. Nunca fui além de umas injecções de ferro e uma máscara de “Darth Vader”, que dá a sensação de ar rarefeito. Faltava-me coragem para mais. Mas sobretudo, não sentia a necessidade. A razão pela qual não atingi o topo deve-se à falta de talento, não à falta de sacos de sangue.

Mas tu, Lance, não és apenas vítima. Tu és sobretudo culpado. Tu obrigaste outros ciclistas a injectarem-se. Instruíste jovens ciclistas que sem dopagem o melhor era irem cavar batatas. Deste cabo da vida de colegas que ousaram abrir a boca. Arruinaste jornalistas que escreveram acerca da tua dupla personalidade. Destruíste pessoas. Destruíste este desporto.

És responsável pelo facto de ciclistas de todas as idades, de todos os níveis, tenham agora que justificar-se perante a família e os vizinhos em todas as próximas festas de aniversário acerca de doping na modalidade. És responsável pelo facto de ainda me perguntarem semanalmente se eu alguma vez me injectei com EPO – e pelo facto que ninguém acredita quando nego.

Há muitos anos, numa das minhas últimas corridas -isto passou-se na Coreia do Sul -, foste convidado para dar o sinal de partida. Recebeste um milhão de dólares para dar um PUM, mas pelos visto não foi suficiente para chegares a horas. O pelotão debaixo de chuva e frio esperava e desesperava. Tu, apesar de meia-hora atrasado, parecias não ter pressa e ainda te puseste a trocar banalidades com uma autoridade local. Eu, que me encontrava na fila da frente do pelotão, pedi-te educadamente se não querias disparar o gatilho para a gente arrancar. “Fuck you” foi a tua resposta. Na altura por respeito não respondi. O respeito era desnecessário, compreendo hoje. Por isso ainda te estou a dever: Fuck you too, Lance.