04 janeiro 2017

A TRAIÇÃO DA MINHA GERAÇÃO



Há tempos, no meu mural do Facebook, não me recordo a que propósito, Miguel Santos fez referência ao manifesto A TRAIÇÃO DA MINHA GERAÇÃO de Gerrit Komrij, um famoso escritor, dramaturgo, polemista e poeta holandês que viveu os últimos 28 anos da sua vida em Portugal. Primeiro em Alvites, Trás-os-Montes, e em 1988 mudou-se para Vila Pouca da Beira, onde foi sepultado depois de ter falecido em Amesterdão a 5 de Julho de 2012.

Miguel Santos 'desafiou-me' para traduzir uma parte deste ensaio, que é uma crítica severa à "geração de Maio de 68", que também é a dele. Mas eu na altura achei o texto demasiado longo para publicar na internet e declinei o convite. Mas Miguel Santos meteu mãos à obra para, segundo ele, 'treinar o holandês-português, por amor à camisola e pela qualidade do texto'. Eu, por solidariedade, acabei por ceder e ajudei a traduzir o texto, que foi ainda revisto por José Rufino e Eneida Costa.

PS. Quem desejar a versão original em holandês e em PDF, ver aqui: https://www.dropbox.com/sh/cxcfpuzb5x8brhg/AADS1xm1MPfAOU595xyIQfRTa?dl=0






Gerrit Komrij

Quero relatar um pesadelo. Um pesadelo é um sonho mau, e no meu caso o pesadelo é um sonho que parecia começar bem mas que mudou rapidamente de rumo. Os protagonistas do pesadelo são, do primeiro ao último minuto, a minha geração. A chamada geração de Maio de 1968, da imaginação ao poder, da música nova, da nova linguagem visual, a geração que transformou
as palavras "marginal", "protesto" e "anti-autoritarismo" em bandeiras, a geração também do entusiasmo com que alargaram o conceito de sexualidade.

Fui traído pela minha própria geração. Faço parte de uma geração de traidores. Inevitavelmente, sou também um traidor. Estava presente e fui contagiado pela traição. O facto de me sentir especialmente traído pelos meus amigos não é uma atenuante.

Sinto-me desamparado e abandonado como um órfão. Estes sentimentos patéticos soam dentro de mim como um alarme estridente quando penso nos meus companheiros de geração. Posso sentir compaixão pelos idosos e olho para as crianças com carinho – apenas a minha própria geração me é estranha. Gosto de ratos, mosquitos, piolhos e piranhas, mas não gosto da minha geração.

Parecia tudo tão simples, para quem os ouvia aos vinte anos. Um martelo e meia dúzia de pregos, mais não era preciso para montar um paraíso. Terminar com uma guerrazita aqui, acabar com um par de ditadores assassinos ali e um velho comissário da polícia acolá, e estamos prontos.

Isto de falar da “minha” geração, dos meus contemporâneos, deve ser colocado em perspectiva. Eu estava de costas, alheio a muitas coisas, andava mais ocupado em livrar-me da minha inocência do que com reformas sociais, não fazia a menor ideia onde estavam os países onde eram cometidas as injustiças contra as quais os meus companheiros protestavam.

A revolução

Uma vez parti o vidro de uma janela de um posto da polícia no centro de Amesterdão. Outra vez, publiquei numa revista literária, que tinha acabado de me tornar redactor - número de Maio de
1968 -, uma tradução de um poema esquisito em francês sobre as esperanças arrebatadas das moças de Maio. Também apoiei, à minha maneira, um poeta dissidente grego preso pelo regime dos coronéis e obviamente torturado. Fiz uma tradução de um poema para ler num comício, poema do qual não entendi absolutamente nada - foi esta a minha total contribuição para a revolução.

Mas dei-me conta da azáfama dos meus contemporâneos. Observei-os, segui-lhes os passos, os olhares, os gestos. Vi-os atarefados com um pé no limiar e com outro já na porta das instituições onde se preparavam para a sua longa marcha. Mas o ar dos tempos, o ambiente, assim como a mentalidade da época, era, de um modo geral tão óbvia – mesmo que estivesses de fora ou indiferente, mesmo sem teres uma ideia do que estavas a fazer ou a deixar de fazer – que aos vinte anos fazias automaticamente parte do grupo, estava no ar que se respirava. Era impensável não estar de acordo com a generalidade dos temas abordados. Ou melhor, tu eras o próprio tema. Mesmo os caloiros das repúblicas de estudantes mais reaccionárias andavam pedrados.

Quando falo da traição da minha geração, refiro-me a um tipo diferente de traição – uma traição única, total – da que normalmente ocorre entre contemporâneos quando envelhecem e são confrontados com a realidade da sociedade. Na concorrência entre eles há, como é natural em toda a gente, uma boa dose de competição. Em todas as gerações dá-se graxa aos mais fortes e pisam-se os mais fracos, odeiam-se os mais velhos em silêncio e apoiam-se os jovens por inveja, mas sobretudo tenta-se enganar o amigo e engatar-lhe a namorada. Não me refiro à natural concorrência e inveja, não, falo de uma completa geração de desertores. Falo da traição que pôs fim a uma civilização. Da traição que mudou a visão do mundo.

Os revolucionários têm agora hipotecas

Atraiçoar os ideais da juventude não é nada de especial. Nem sequer é uma traição, trata-se de fadiga precoce. De repente, vemos os nossos velhos amigos de escola – todos eles rebeldes e revolucionários – a empurrar carrinhos de bebé, a tratar de canários e a preencher o boletim do totoloto. Usam pantufas, têm hipotecas e consomem suplementos de vitaminas. Rapidamente deixam de distinguir a diferença entre os contornos da mulher e do sofá.

A traição de que falo é patética e ao mesmo tempo imperceptível. É comum e ao mesmo tempo indiferente. Foi assumida e passou também, assim como quem não quer a coisa, como se não fosse uma traição.

Chegamos precisamente à principal característica desta traição: o facto da representação e da realidade terem sido premeditadamente separadas. O que os meus contemporâneos faziam na vida privada era o oposto do que diziam professar.

Sim, até éramos obrigados a acreditar que estes ricaços e chicos-espertos permaneceram até hoje fiéis aos ideais dos anos sessenta. Tinham uma enorme facilidade em comportar-se como antigamente, mas exibiam esse comportamento como se de algo novo se tratasse. Esta dicotomia entre aparência e realidade vai tornar-se também predominante noutras áreas - na política, na literatura, no comportamento social, na economia.

O ser e a aparência. Imagem e realidade. Propaganda e produto. Mensagem e conteúdo. O que se pensa e o que se diz. Não sei se esta compulsão, que incentiva os meus contemporâneos à traição, facilitou a popularidade desta dicotomia ou se a separação foi mais uma maneira filosófica de legitimar a traição. É que os conceitos traição e anos sessenta estão demasiadamente interligados.

Uma combinação ideal entre origem social e aumento de prosperidade parece ter assegurado uma curiosa mistura de fanatismo
e apatia inerente aos meus colegas de geração. Rapazes e raparigas, filhos de famílias em ascensão social que alcançam agora facilmente o que gerações anteriores conseguiram com muita dificuldade numa sociedade retrógrada, em que a autoridade, apesar de posta em causa, era ainda bastante cobiçada - isto tinha que terminar num banquete para oportunistas, traidores, hipócritas, maníacos e ditadores.

Qual foi a contribuição da geração de Maio de 68?

A autoridade como factor determinante foi identificada e isolada. O papel dos intelectuais foi reinventado. Duas descobertas que na realidade não passaram de uma enfadonha reprise da história das revoluções. Mas não podemos culpar os rapazes e as raparigas por isso. No seio do movimento hippie foram encenadas muitas mais reprises, só que desta vez o húmus e as condições revelaram-se fatais.

“A small step for man, but a giant step for mankind.”

Um famoso slogan do tempo em que a minha geração já andava de cu-tremido e tinha um tacho no parlamento. O passo gigante não se realizou, pelo menos, não para a frente.

Os ideais da esquerda tornaram-se os ideais por excelência. A direita deixou de existir, e a própria direita deu, na realidade, o braço a torcer. A direita não passava de sujeitos obsoletos, homens de peito inchado carregados de condecorações, sentinelas amorfas que posam invariavelmente entre bandeiras e cães de guarda.

Desde o início a minha geração compreendeu a importância da caracterização, da imagem pejorativa e da demonização. Copywriters, jornalistas, humoristas, escritores, poetas – todos adeptos dos tempos novos. Os infiltrados de esquerda, especialistas em reuniões e sempre à pesca de uma boa posição social, podiam sempre contar com uma campanha publicitária de "good will". Porque isso começou imediatamente: penetração na máquina do estado, apropriação de empregos lucrativos, ocupação de posições de poder, expulsão dos lobos velhos para dar lugar aos lobos novos.

É evidente que a rebeldia dos "provo’s" https:// en.wikipedia.org/ wiki/Provo_(movement) e demais revolucionários mudaram alguns detalhes na condição da mulher, na vida nocturna e na censura cinematográfica. Na realidade ficaram-se nos detalhes e melhorias aparentes. A proeza mais bem conseguida foi, talvez, que passamos a acreditar em detalhes, que as suas melhorias fictícias continuaram a ser consideradas verdadeiras melhorias e era 'bon ton' não prestar grande atenção às linhas gerais. As linhas gerais tornaram-se suspeitas. Questões secundárias e cosméticas tornaram-se decisivas. E não causa surpresa que justamente as linhas gerais eram o seu ponto fraco.

Envelheci entre traidores, entre criminosos. Todos tinham direito a opinião – democratização, participação. Na verdade ninguém sabia nada de nada. A maioria rejeitava e logo a seguir a coisa era aceite. Faziam-se previsões de risco quando na verdade já tudo estava decidido. Avaliavam-se secretamente decisões que se sabia de antemão que nunca seriam tomadas.

A presença da pseudo-democracia era tão avassaladora que ninguém se apercebeu que a verdadeira democracia tinha sido abolida. Graças aos meus estimados colegas de juventude vivemos agora numa democracia nominal – chamamos-lhe democracia, então é porque deve ser.

Os anos sessenta

Os donos dos anos sessenta foram capazes de vender tudo em nome do sucesso dos anos sessenta. Mesmo quando o prazo de validade já tinha expirado há muito tempo.

Privacidade, para citar outro grande tema. Na altura os jovens revolucionários não falavam de outra coisa! O grande capital, a elite e o complexo militar estão apenas interessados nos nossos dados pessoais. Documentos de identidade ou recenseamentos para base de dados – os 'soixante-huitards' reagiam a isto como picados por uma vespa. Agora que estão há trinta anos no poder – primeiro um pouco, depois um pouco mais e por fim totalmente – a questão da privacidade desapareceu sem comentários pela porta das traseiras. Agora, são capazes de afirmar categoricamente que nunca se preocuparam com o assunto.

Entretanto, os dados pessoais mais idiotas foram interligados e cedidos sabe-se lá a quem. E, desta forma, somos todos nós analisados e investigados a qualquer hora do dia e seja por quem for. É uma discussão que perdeu importância. E assim a prova dos nove
da liberdade individual foi imediatamente entregue de bandeja por aqueles que mais preocupados estavam na altura, quando eles próprios podiam ser afectados.

Para a fome de poder, assim como para a obsessão de sistematizar da minha geração, a invenção do terrorismo foi uma dádiva. O último dispositivo de controlo foi abandonado. O vírus totalitário consolidou-se dentro de nós, de dentro para fora. Felizmente damos-lhe outro nome. A divisão mecânica entre professados piedosos ideais e palavreado sem sentido (ameaça à civilização, a democracia está em perigo) continua a funcionar na perfeição.

Fixamo-nos cegamente no que é acessório e deixamos pigmeus e o vento a tratar das linhas gerais. A consciencialização tornou-se um fim em si. A consciencialização, não importa de quê, tornou-se uma prática obrigatória. A nossa fé na embalagem converteu-se numa segunda natureza. Nos anos setenta e oitenta fomos levados a acreditar que avançávamos centímetro a centímetro. Nos bastidores recuávamos realmente um quilómetro de cada vez.

Sexualidade

O que é que aconteceu com os grandes fenómenos sociais, tais como a sexualidade e a fé? A que levaram os ideais dos anos sessenta quando eles próprios deram os primeiros passos na administração da sociedade? Que se tornou uma rebaldaria é o menos que se pode dizer. A sexualidade e a fé tinham obrigatoriamente que ser uma coisa divertida, sem pais nem padres, sem a abominável autoridade. Mas os nossos governantes viraram de cabo quando a sexualidade se recusou a ser engraçada e divertida (quando eles próprios sentiram a idade da impotência e do cancro da próstata a aproximar-se) - aí apareceu de novo o chicote.

Não porque eles se tenham enganado, claro. Graças a Deus, nem de propósito apareceram os necessários relâmpagos para desviar a atenção: a SIDA e o pedófilo. No meu tempo de escola o pedófilo era simplesmente o professor de religião e moral.

Religião

Ora cá temos a religião. Cada seita e cada idiota com uma nova crença era perfeitamente aceitável, mas então, porque não a religião oficial? Enquanto a religião oficial, com os seus martírios, templos e ritos, ia desaparecendo, o número de maluquinhos com ritos estranhos ia aumentando. O que sobrou foi a convicção comodista que religião é apenas uma questão de prazer e de conforto pessoal.

A imprudência da minha geração, ao lançar ideias meio-cozinhadas, deu origem a viver num mundo onde a sexualidade e a fé são tratadas de forma ainda mais inibida e crispada. Mais contrafeito que o pseudo-convívio não é possível. Todos os dias presenciamos as consequências. Vemos constantemente pugilistas a esmurrar o ar em becos sem saída. Vemos a exortação dos moralistas a soprar na nossa direcção, fingindo inocência, mas entretanto somos confrontados com
a insistente tagarelice dos que acreditam que "existe-qualquer-coisa", os chamados "qualquercoisistas".

Caímos na armadilha traiçoeira de indivíduos que reivindicam para si privilégios que não podem ou não querem permitir aos outros. Liberdade e auto-determinação. É que eles nunca pensaram acerca do verdadeiro significado de conceitos como liberdade e auto-determinação.
Às vezes gostaria que o inferno ainda existisse para todos os meus contemporâneos, que depois de Maio de 68 – em princípio com alguma relutância, mas rapidamente com bastante empenho – invadiram a actividade política e social. Um inferno com tochas, fogueiras, braseiros e tudo mais.

O ensino

A desordem causada no ensino! A desordem como golpe de misericórdia. Chega de lamentações sobre este tema. Enquanto o último esperançoso de Maio de 68 não desaparecer da face da terra a destruição parece irreversível. Aponto apenas brevemente o impacto que teve a forma como lidamos com a história e tradições literárias. Anoto que foi a minha geração, que nas empresas e na universidade começou a substituir o holandês pelo inglês. E tinham excelentes motivos.

Basta abrir os olhos para o que fizeram com o meio ambiente e a paisagem. Vivemos no meio da esmagadora evidência da destruição causada por uma geração criminosa e indiferente. Demolidores e arquitectos tornaram-se irmãos de sangue sob o alto protectorado da política. Também neste caso os ideais da minha geração serviram como legitimidade vazia. Morte à tradição e aos valores antigos! Abaixo o passado elitista!

Consumidores de subsídios

Até agora falamos sobre temas gerais tais como democracia, privacidade, sexualidade, feminismo, religião, educação, meio ambiente e estética do ambiente. Mas a entrega total ao comércio foi realmente a verdadeira revolução silenciosa. Os meus ambiciosos administradorzecos tornaram-se rapidamente excelentes angariadores e vorazes consumidores de subsídios. A determinada altura tinham as finanças do estado repartidas, um pouco para cobrir a nudez da cultura e do ambiente – qualquer deles sob a forma de conluios e reservas privadas – e a grande maioria para os seus próprios arranjinhos e negociatas. Por isso demonstravam grande compreensão em relação a outros oportunistas. Pouco menos que ordinários proxenetas, mas recordo-me de antigos camaradas que açambarcaram pequenas fortunas com empresas de pornografia através do telefone. Novos tempos, novas oportunidades.

Televisão

Foi principalmente a média que apadrinhou o casamento entre os meus amigos e o neo-capitalismo. Os meios de comunicação estavam abertos, prontos para lhes satisfazer sem entraves todas as cobiças
e desejos. Se há algo que reflecte a verdadeira imagem de ’68 é a televisão. Da telenovela ao teleterror - não é mais do que uma íntima interacção entre empresários espertalhaços e políticos. A legitimidade? É o dogma da participação. É a doutrina do homem comum.

Reparem. Uma enorme multidão vê televisão. Pensem nos vendedores de entretenimento e de outras inutilidades quebrando a cabeça a tentar rentabilizar esta actividade. Um sonho que os põe tão ávidos como um fabricante de verniz para as unhas, quando pensa na quantidade de dedos que existem na China.

A multidão amorfa sentada a olhar para a caixa, que dá luz e som – isto não significa que exista ainda um fluxo de dinheiro entre eles. Na realidade a caixa não tem nada a ver com dinheiro. A caixa brilha e cintila à borla, podem mendigar o que quiserem, mas se a massa não aderir e se se mantiver indiferente não têm meios para aplicar sanções. Não há nada que irrite mais os vendedores do que a caixa não ter uma fenda para introduzir moedas.

Durante anos a situação manteve-se, uma coisa morta a olhar para outra coisa morta. O ar entre o santo altar da televisão e a multidão a assistir era tão denso como a passividade do último suspiro. Entre os dois estabeleceu-se uma enorme dinâmica com dinheiro como único motivo. À minha geração se deve a honra deste milagre, o milagre de ter iniciado um fluxo financeiro entre televisão e público.

Foi preciso inventar montes de mentiras. Qualquer suspeita de uma ligação entre o serviço público de comunicação social e educação contínua (um velho cavalo-de-batalha da revolução) tinha que ser evitada. Em nada foram os nossos políticos e administradores tão úteis como em alimentar suspeitas sobre qualquer actividade criativa, lúdica ou educativa para os nossos essenciais canais de comunicação. Os canais estão agora para sempre bloqueados – cedidos ao desbarato a feirantes. Joop van den Ende [conhecido em Portugal através da produtora de Tv Endemol, trad.] foi laureado pelos nossos governantes. Como dourar um monte de esterco.

Alta e baixa cultura

A passagem da tristeza-televisiva para um terror-televisivo é exemplar da traição e do traiçoeiro frenesim da minha geração. Em nada foram os intelectuais de 68 tão prestáveis. As suas teorias sobre alta e baixa cultura - que valorizam o estudo da leitura popular e o divertimento de massas, elevando-os acima do lamaçal do folclore para os mais altos níveis das ciências sociais - nem de propósito, vieram mesmo a calhar.

A política estava sempre pronta a reproduzir a treta pseudocientífica dos anos sessenta. O primeiro grande achado foi substituir a palavra oportunismo por pragmatismo. Depois declararam solenemente que a distinção entre direita e esquerda tinha desaparecido: o que
foi rapidamente abraçado pelos políticos. Simplesmente porque lhes dava jeito. Mas a melhor foi a declaração de que as diferenças entre alta e baixa (cultura) eram vagas. Houve imediatamente dirigentes que aproveitaram a ocasião para as igualar. Simplesmente porque lhes dava jeito e porque havia muito dinheiro a ganhar.

A grande aldrabice da equivalência entre alta cultura e a cultura popular apenas assegurou que no combate de boxe entre cultura e entretimento, o entretimento mais grosseiro tenha vencido. Podemos agradecer também à minha geração. Não só venderam ao desbarato os últimos restos de civilização, como também aboliram a ideia de que é recomendável civilizar. Entretanto, e no seu próprio interesse, realizaram uma campanha silenciosa. Uma campanha em que palavras como "elitista" eram ridicularizadas. Funcionou, com a ajuda entusiasta dos intelectuais e filósofos do partido, assim como dos diversos institutos de reflexão sociológica.

Vi-os, na altura, de pé nas barricadas de punho cerrado e com um brilho utópico nos olhos. De seguida, vi-os rastejar e ouvi-os murmurar. Entendi o que os seus olhos na altura viam. Um futuro burguês
e abastado para si, mas sem grandes chatices com a alta cultura. Um futuro bem-aventurado a confiscar e a intervir, e de resto, um fartote de reuniões ociosas acerca da eternidade do nada.

Envelhecer não tem grandes surpresas. Contudo, foi certamente uma surpresa quando fui pela primeira vez repreendido na rua por um polícia mais novo do que eu. Em seguida foi o médico, depois
o advogado, o notário, todos eles gente mais nova do que eu. Mas a mãe de todas essas surpresas foi quando, de repente, surgiu um contemporâneo como presidente dos Estados Unidos. Espantoso. Era obviamente um presidente que gostava de se divertir e ainda mais de relembrar as suas conversas de estudante, que disfarçavam astutamente a pobreza das suas ideias. Ideias que arrastou até ao gozo da satisfação sexual no Oval Ofice. Uma vez não são vezes - um broche no escritório tem que ser possível. Entretanto lá vai recolhendo chorudas gratificações dos magnatas dos mass-media. Uma criança do seu tempo, um amor de traidor.

Os mantras de Maio de 1968 ainda não estão extintos. Só tendo em conta Maio de 1968 é possível imaginar que na Holanda tenham visto em Pim Fortuyn alguém capaz de limpar politicamente os estábulos de Augias. De facto, ele era um típico personagem dos anos sessenta, quase um representante puro-sangue do neomarxismo, um verdadeiro contemporâneo, um traidor exemplar. Apresentou-se como uma novidade crítica no seio da nossa rede excessivamente estruturada e sofisticada de dependências, subsídios de resgate, ânsia de controlo e burocracia.

Com os seus meios-talentos e aptidão para divertir, era ele próprio o resultado dessa prática. Foi um excelente actor, como todos os outros gabarolas do tempo do período revolucionário – como se ainda dominasse o truque. Já nem era um truque, era apenas rotina. Entretanto aproximou-se do poder. Estava disposto a qualquer compromisso, a qualquer traição, logo que fosse enfeitada com poder. Para alcançar o poder, realizou através dos media uma falsa exibição - 30 anos de traição em representação acelerada. Os repórteres seguiam-no como cachorros. Dominava perfeitamente as manhas e artimanhas daqueles com quem mais tarde partilharia a cama. Se ainda fosse vivo teria sido acolhido pelos altos funcionários de serviço como um filho pródigo.

Toda a minha geração chegou ao poder através de bluff e habilidades. Todos os meus colegas de geração, que depois de Maio de 68 se meteram na política e em movimentos sociais, faziam parte dos que se adaptaram. Inicialmente, tinha um certo charme vê-los dedicados à política - tratava-se de minúsculas vitórias para o movimento dos "smal steps". Devagar mas decididamente esta vanguarda, em nome de todos nós, demonstraria como pegar o eixo do mal pelos cornos.

Imaginação no poder

A marcha através das instituições. Uma brisa fresca. Outra música. Idealistas têm sempre que se adaptar. Ninguém escapa às suas próprias fraquezas. No entanto, neste caso, a palavra traição não é exagero.

A minha geração não se defrontou apenas com dificuldades práticas e com a inércia do sistema, trabalhavam activamente e com entusiasmo para manter a linha de demarcação entre governantes e otários, mas também para a reforçar, para enfraquecer a democracia e idolatrar a finança.

Demonstraram ser camaleões, mas no sentido mais persistente
e irritante da palavra. Primeiro disfarçaram-se com as cores do adversário, do velho inimigo. Em seguida fingiram que estavam ainda envolvidos com as cores dos revolucionários que eles alguma vez foram, ou por que se faziam passar.

Naturalmente que não foi tudo só culpa deles. Influências externas, as ondas imparáveis da história, acidentes, o acaso e catástrofes também existiram – mas consentiram demasiado, fizeram vista grossa, os seus corações sobressaltaram com uma alegria secreta, renderam-se à sua índole reaccionária, ao espírito dos seus pais – o galo fartou-se de cantar.

Se algo se pautava pela bitola dos ideais de juventude, tratava-se de uma ocorrência puramente verbal. A própria ascendência era sofregamente usada e abusada como disfarce. Nenhum dos impulsos iniciais se via reflectido nas suas acções. Os nossos revolucionários
– colegas de café, de estudo e parceiros de dança do passado, alguns deles, ainda por cima, eram personagens dos meus sonhos e fantasias sexuais – tornaram-se regentes satisfeitos, na maior parte dos casos, copiosamente satisfeitos.

A parte divertida de Maio de ’68 (“lúdica” como na altura se dizia) afundou-se rapidamente ou degenerou numa patetice alegre de tudo-numa-boa, em que tudo é aceite. Aqueles que não se adaptaram (e permaneceram fiéis ao espírito original) foram considerados como fracassados enquanto os verdadeiros fracassados se alapavam no trono.

Quem disse que a história era justa?

Que este reviver não passa de um guisado irreconhecível - como todas as mal-amanhadas retrospectivas históricas e historiografias musicais na televisão – é já em si uma 'conquista' dos anos sessenta. A falsificação histórica é agora escrita pelos Joop van den End(es).

Os anos sessenta tornaram-se um produto. Pensando bem, sempre foram um produto, protegido pelos principais culpados contra todo aquele que se atrevesse a apontar o dedo repreensivo.

Aponto-os com todos os meus dez dedos. Sinto-me traído pela minha geração. Cresci entre uma geração de traidores. Faço parte de uma geração que deixa o mundo, pela primeira vez em séculos, pior do que o encontrou. Não criaram nada digno de se ver, com estilo, nem sequer um grande gesto. Nada.

Este texto pode parecer aqui e ali um lamento. Lamentações não é o meu estilo. Era apenas a descrição de um pesadelo, não um ensaio científico. É apenas o relato de um pesadelo que começou, um dia, como um sonho. 

Sem comentários:

Enviar um comentário