Em Novembro de
2008 José Eduardo Agualusa faz de conta que é Machado de Assis e diz sobre o A.O. que
”há muito acerto nas queixas de Vasco Graça Moura. O que o perde é o tom
– esse clamor apocalíptico, e um indisfarçável rancor em relação ao
Brasil.”
O presidente Lula assinou no passado dia 29 de
Setembro de 2008 o decreto que promulga o Acordo Ortográfico da
Língua Portuguesa. Nesse mesmo dia comemoraram-se os cem anos da minha
morte. Escrevo esta frase — ou melhor, faço com que a escreva a
mão alugada de um pobre africano — com certa inquietação: ainda agora
morri e já se foi um século. O tempo é um equívoco que a morte não
resolve.
No Brasil, o Acordo Ortográfico entrará em
vigor em Janeiro de 2009 e sua implementação será feita de forma gradual,
de modo que as novas normas chegarão aos textos escolares em 2010,
tornando-se obrigatórias a partir de 2012. Em Portugal e nos restantes
países de língua portuguesa ninguém sabe muito bem quando o
Acordo irá começar a ser aplicado. As vozes contra o Acordo fizeram-se
ouvir logo que este foi aprovado, em 1990 — e reapareceram dezassete
anos depois. Vasco Graça Moura, notável poeta e tradutor de poetas,
para além de romancista e homem político, perspectiva o desastre. O
desastre, sim. Um imenso desastre. Uma tragédia. Este Acordo é,
escreveu Graça Moura em crónica publicada no Diário de Notícias, «um documento
que iria assassinar a língua portuguesa a curto prazo».
Num outro artigo o ilustre escritor conclui
que «o único objectivo real de toda a negociação do Acordo, repito, o
único objectivo real de toda a negociação do Acordo foi o dessa
supressão das consoantes ditas mudas ou não articuladas!», e logo acrescenta:
«O Acordo, ao perpetrar tão crucial ablação, serve interesses
geopolíticos e empresariais brasileiros, em detrimento de interesses
inalienáveis dos demais falantes de português no mundo, em especial do
nosso país.» Os prejuízos, assegura, serão astronómicos:
«Ficarão inutilizadas existências gigantescas de dicionários e
livros escolares nas linhas de produção e nos armazéns dos editores; as
famílias terão de suportar custos inadmissíveis na compra de novos
materiais; milhões de livros adquiridos pelo Plano Nacional de Leitura e
pelas bibliotecas escolares tornar-se-ão inúteis para os jovens;
a importante posição das exportações da edição portuguesa para os
países africanos acabará por se perder». Etc.
Encafuado na eternidade escuto estes graves
presságios e estremeço de terror e de angústia. Já vejo a doce língua
portuguesa a estrebuchar no chão enquanto o Brasil, com um osso
atravessado no nariz, lhe extirpa à facada as consoantes mudas para, de
seguida, a devorar inteira e crua. Oh, desgraça!, já vejo a
juventude portuguesa guinchando no rude dialecto dos rappers
americanos — perdido para sempre o idioma dos seus pais —, enquanto em
África milhões de angolanos e moçambicanos regressam à selva e à
barbárie, desesperados por não poderem ler o seu Eça ou o seu
Saramago na legítima ortografia lusitana.
Há muito acerto nas queixas de Vasco Graça
Moura. O que o perde é o tom – esse clamor apocalíptico, e um
indisfarçável rancor em relação ao Brasil.
Este insidioso rancor contra o Brasil está,
aliás, presente em muitos dos discursos contra o Acordo Ortográfico. Há
portugueses aos quais parece incomodar o crescente empenho do Brasil
na afirmação internacional do português. Noventa e cinco
por cento dos falantes de português no mundo são brasileiros. Não fossem
os cento e noventa milhões de brasileiros e o português teria
menos relevância que o holandês ou o catalão. Os portugueses
deveriam, sim, exigir mais empenho ao Brasil.
Recordo, a propósito, o caso do escritor
português de visita ao Rio de Janeiro a quem alguém terá, estupidamente,
recriminado o sotaque (querendo, talvez, referir-se à má dicção).
Empertigando-se o português retorquiu: «Quem tem sotaque é você,
a língua é minha.» Engano o dele. A língua é de todos quantos a
vêm criando e recriando, com paixão e ternura, desde que ela se formou,
e, mais tarde, se espalhou pelo mundo.
No que diz respeito ao sotaque, o erro não é
menor: os especialistas em prosódia têm vindo a comprovar, através de
engenhosos exercícios, que o sotaque de Lula da Silva está mais
próximo do sotaque de Pedro Álvares Cabral do que o de Cavaco Silva. E não
apenas o sotaque. A periferia tende a ser conservadora. Quase
sempre muda-se a partir do centro, e terá sido também isso que aconteceu
com o nosso idioma. Se, como receiam tantos portugueses, o presente
Acordo Ortográfico forçar o português de Portugal a aproximar-se das
variantes brasílicas, não haverá nisso tanto de deriva quanto de regresso.
Ao aproximar-se do Brasil, está Portugal aproximando-se de si
mesmo — está, afinal, a fazer-se mais português. Também nesse sentido
o Brasil é o futuro de Portugal.
Ora viva! Quem eu fui encontrar por aqui!
ResponderEliminarQuanto ao AO90, nem digo nada para não chatear o Agualusa... Daqui a pouco estamos é a defender o regresso ao latim como a língua mais próxima de nós mesmos.
ML
ML,
ResponderEliminarOra viva, ditosos olhos a leiam!
É verdade, refugiei-me aqui há já algum tempo, onde dificilmente serei censurado. Só se for a CIA, mas com esses posso eu bem, ideologicamente claro!
Não me diga que não está de acordo com este excelente artigo do Agualusa? De qualquer forma creio que ele tem razão quando diz que “há um indisfarçável rancor em relação ao Brasil” em certas críticas ao AO. Em vez de ‘rancor’ eu diria talvez ‘dor de cotovelo’.
De acordo com o Agualusa? Brincadeirinha, não? E agora ficámos sozinhos com o menino nos braços como se esperava, e em vez de duas normas temos três. A do Brasil (que ainda 'vai pensar'), a de Portugal (o famoso AO90), e a de Angola (que se recusa) e Moçambique (que tb 'precisa de tempo') e que era a nossa oficial até há dois anos.
ResponderEliminarSe fosse hoje não havia dinheiro para gastar em inutilidades. Azar o nosso terem tido carta branca para deitar dinheiro pela janela fora.
Eu sempre lhe disse que conhecia o careto de outros carnavais e que o que conhecia não era abonatório. Malcriado, petulante, impróprio para convivência. Juntou-se a uns burrecos que se ajoelham e beijam a fímbria da sotaina e isso foi melhor para o ego do que uma lata de graxa.
Vamo-nos vendo por aqui, mas veja lá se não elogia demais aquela amiguinha do Pinochet. Lá porque morreu não foi beatificada, ainda tem muitas contas a prestar. :)
ML
Já agora digo como cheguei aqui. Este post foi transcrito numa página do facebook contra o AO90. Quando abri o link, vi um nome que me pareceu familiar e vim espreitar...
ResponderEliminarEssa da explicação 'dor de cotovelo' também está boa, principalmente porque assenta na ideia das maiorias falantes. Bem arranjados estavam os ingleses, terem que enfrentar os milhões de pares por esse mundo fora... E os franceses e os espanhóis, que se estão nas tintas para unificações com os restantes francófonos e hispanófonos. Já o Fernando Pessoa, no livrinho que acima cita, diz por que razão este tipo de reforma é absurda e aí a inveja nem sequer pode ser considerada se nos reportarmos à época em que foi escrito.
Salut!
ML
ML: “Eu sempre lhe disse que conhecia…..”
ResponderEliminarEu sei bem o que me disse mas continuo a ter uma opinião ligeiramente diferente sobre este assunto. Creio que a coisa é mais complexa do que a atitude de um indivíduo. O que me aconteceu no F.I. acabaria, mais tarde ou mais cedo, por me acontecer também por exemplo no Arrastão, Aspirina b, CincoDias ou outro qualquer. A nossa gente, apesar de já terem passado 40 anos de democracia, tem ainda alguma dificuldade em lidar com dissidência, com opiniões divergentes, sem criar grandes atritos. Mas tenho esperança na rapaziada mais nova, que são bem mais tolerantes do que a minha geração…
ML: “veja lá se não elogia demais aquela amiguinha do Pinochet.”
Já me conhece, eu cá sou muito ecuménico, tanto elogio as amiguinhas do Pinochet como as amigas do Estaline. Parto do princípio que as amiguinhas DE não são a ‘real thing’ e além disso sou pela abertura total.
ML: “Já o Fernando Pessoa, no livrinho que acima cita, diz por que razão este tipo de reforma é absurda.”
Livrinho!
Refere-se à frase do Agualusa: “escritor português de visita ao Rio de Janeiro….”, e então o escritor seria o Fernando Pessoa?
Sao Paulo vorig jaar. Ik maak een praatje met iemand op straat. Na een tijdje vraagt hij aan mij (Portugees brabbelende kaaskop): jij hebt zo'n vreemd accent, je komt vast uit Portugal.
ResponderEliminarHahahaha. Moet je je voorstellen hoe sterk het accent van Beira aan je kleeft...
ResponderEliminarNão, esse é o Graça Moura. Refiro-me a “Também o Valupi (no Aspirina b) publicou um artigo (que eu desconhecia) do Fernando Pessoa sobre a língua que é actualíssimo”.
ResponderEliminarO post não é seu mas está reproduzido no seu blogue e penso que o artigo referido (que não li) terá sido transcrito deste livro.
http://www.almedina.net/catalog/product_info.php?products_id=6270
Sim, é possível que tal se passe com caretos de ego semelhante, mas as características pessoais são determinantes e nem toda a gente desce a comportamentos imaturos e prepotentes. Birrinhas, lol!
ML,
ResponderEliminarFui sorrateiramente procurar no arquivo do Aspirina sem me reter demasiado (para não vomitar) nas bandeiras socialistas a abanar com o culto da personalidade à volta do Engenheiro, e encontrei um excerto retirado pelo Valupi do livro de Fernando Pessoa a que você se refere: A Língua Portuguesa.
http://aspirinab.com/valupi/para-acabar-de-vez-com-o-acordo-ortografico/
Mas o que li não é convidativo para comprar o livro! Uma decepção, eu que gosto tanto do Fernando y sus tres muchachos!
… o problema da ortografia é o da palavra escrita, nada tendo essencialmente que ver com a palavra falada, visto que esta nada tem com aquela; que sendo a palavra escrita um produto da cultura, ao contrário da falada, que o é do simples uso, hábito ou moda,
Com todo o respeito, o Fernando quando escreveu isto tinha certamente bebido umas ginjinhas a mais!!! A palavra escrita e a palavra falada são as duas faces da mesma moeda e ambas culturais…
… a ortografia, sendo um fenómeno cultural, é puramente individual, não tendo o Estado coisa alguma com ela, ou de qual qualquer usa, salvo nos estabelecimentos oficiais ou escolares;
Pois, mas os estabelecimentos oficiais e as escolas estão normalmente sobre a tutela do Estado. E, nesse caso, a influência do Estado na ortografia é, desde tenra idade e durante muitos anos, bastante grande. Não deixando muita margem para a INDIVIDUALIDADE.
O Fernando parece não perceber que a ortografia não passa de um convénio para que as pessoas se possam entender, assim como as regras e sinais de trânsito para quem conduz um carro. É verdade que no tempo dele ainda não havia semáforos em Lisboa…